quarta-feira, 29 de março de 2017

VESTÍGIOS DA VIDA DO “OUTRO” ANARQUISMO EM ALMADA


[Filmagem do comício libertário realizado na Incrível Almadense em 20 de Junho de 1974: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/movimento-libertario-portugues/]

Como sabemos, com a queda da ditadura nacional implantada a 28 de Maio de 1926, ou seja, no contexto subsequente ao golpe militar de 25 de Abril de 1974, o carácter da acção levada a efeito nessa conjuntura política pelo grupo libertário de Almada é difícil de enquadrar e de sintetizar numa fórmula simples. A estratégia de intervenção desta associação libertária, formada na deliberação da Assembleia de 13 de Maio de 1974 por dez elementos da velha guarda anarquista de base operária e um jovem antimilitarista refractário do Serviço Militar Obrigatório (S.M.O.), conheceu momentos de euforia que projectaram o anarquismo para lá do espaço que logicamente seria do domínio circunscrito à actividade local do Grupo de Cultura e Acção Libertária. Durante este período, enquanto respondiam à especificidade do que ousam chamar de «revolução do 25 de Abril», este núcleo de companheiros mais velhos constituía a delegação do Movimento Libertário Português que, sob um esquema organizativo, integra e estrutura a região do sul do país.
O filme documenta o primeiro comício organizado pelos resistentes libertários após o derrube do Estado Novo; é uma acção pública que produz o efeito daqueles momentos, que prosseguem sem sucumbir e são capazes de sobreviver ao seu desenlace histórico. Entre outros acontecimentos abundantemente evocados pela historiografia, por exemplo, o 1º de Maio de 1974 onde os anarcosindicalistas desfilaram ostentando com orgulho o antigo estandarte da Secção de Belém do Sindicato Único Metalúrgico associado à organização anarcosindicalista portuguesa, a Confederação Geral do Trabalho (C.G.T.), poderíamos debater e interpretar estas imagens ligadas ao relançamento do anarquismo no contexto sócio-cultural ameaçado pela velocidade da modernização da sociedade. Nesta fase de aguda crise social estas imagens encontram-se preservadas no arquivo da RTP; neste sentido elas estão disponíveis e não perdem a consistência da sua privilegiada relação ideológica ao serem visionadas nomeadamente por todos os interessados.
Trata-se da memória colectiva da história social do anarquismo em Portugal que resistiu durante décadas à calamidade do nacionalismo e do militarismo. Mas é também a prova da persistência revolucionária daqueles companheiros veteranos cheios de esperança num tempo melhor e mais propício à expansão do ideal. Estes activistas anarquistas pretendiam esboçar um movimento libertário unificado, não renunciando à luta pela reconstrução do movimento consciente da sua ideologia. Com o fim da ditadura fascista em 1974, não podíamos deixar de fazer uma breve referência ao empenho e determinação deste agrupamento autónomo que viveu essa época agitada do «PREC» refazendo o anarquismo e, de forma socialmente intensa, participava no evoluir das actividades anarquistas defrontando os sofismas sociais, políticos e ideológicos repercutidos por todos os partidos políticos. Eles, com o fôlego de velhos militantes cegestistas, ampliavam o futuro com uma nova expectativa expurgada de toda a nostalgia, viam na Revolução Social um processo libertador, e por isso distanciavam-se daquelas personagens que presas ao passado olham sobre o ombro para trás.


O Grupo de Cultura e Acção Libertária reuniu no dia 24 de Maio de 1974, pelas 21.30 horas, nas instalações provisórias da sua sede (lembro-me que funcionava numa pequena sala de um armazém de brinquedos), na rua Fernão Lopes, nº 12, r/c, em Almada, a fim de discutir a iniciativa de se realizar uma sessão de propaganda local. O projecto foi unanimemente aprovado pelo conjunto dos companheiros que logo constituíram uma comissão das actividades em curso da delegação do Movimento Libertário Português.
Deste modo, foi o referido evento agendado para dia 20 de Junho de 1974, às 21.30 horas nas instalações do salão de festas da Sociedade Filarmónica Incrível Almadense. Quando se pormenorizava os trabalhos preparatórios, no dia 2 de Junho de 1974, foi determinado convidar dois companheiros de Lisboa para intervirem no comício com as suas próprias comunicações e, considerando a falta de meios materiais, redigir um comunicado para ser impresso e fazer-se a sua distribuição pública na cidade de Almada. Com efeito, ainda foi decidido executar alguns cartazes em papel cenário exibindo algumas sentenças de teor educativo para serem posteriormente fixados nas galerias superiores do salão de festas da Incrível Almadense.
O objectivo desta sessão pública de esclarecimento era expor as propostas do programa anarquista para a questão social. Na mesa podemos ver, no sentido da esquerda para a direita, o médico Gladstone da Costa, um elemento exterior à funcionalidade orgânica do movimento, mas que na altura demonstrara ser um simpatizante e amigo dos anarquistas almadenses. Ao seu lado estava o valioso elemento anarquista Francisco Quintal (1898-1987), que nos anos 20 foi director do jornal O Anarquista, órgão da União Anarquista Portuguesa (U.A.P.) e delegado desta organização anarquista à Conferência de Valência, em Julho de 1927, da qual emergiu a Federação Anarquista Ibérica (F.A.I.). Após o 25 de Abril, teve um papel preponderante na fundação do Centro de Cultura Libertária (C.C.L.), sendo mais tarde o director do jornal Voz Anarquista publicado a partir de Janeiro de 1975 por este grupo anarquista de Almada. Seguindo a mesma ordem, pode ver-se o antigo funcionário dos Serviços Técnicos do Município de Almada, de seu nome Domingues. Foi sob o impulso escrupuloso da liberdade que durante esse período frequentemente prestou uma colaboração valiosa e, sem nunca associar-se ao alcance do nosso ideário, poderá dizer-se que nunca saiu diminuído do nosso ambiente. Por isso vale a pena lembrar que foi um amigo deste grupo libertário.


No centro dos palestrantes vemos o operário metalúrgico Sebastião de Almeida (1908-?), elemento libertário formado dentro da organização autónoma que reflectia o clima rebelde das Juventudes Sindicalistas, enquanto orador e coordenador dos trabalhos da mesa. Com o restabelecimento das liberdades democráticas, participou no encontro dos anarquistas no 1º de Maio de 1974, em Cacilhas, na cervejaria Canecão. Nesta caminhada para promover, organizar e afirmar o anarquismo num trabalho contínuo, sempre foi incansável, discreto e um esforçado militante que desempenhou com a sua presença um papel essencial, mantendo durante longo tempo o funcionamento administrativo do jornal mensal Voz Anarquista. Não é de estranhar que ao seu lado esteja o livreiro Manuel Achando, gestor da livraria Capas Negras, um estabelecimento situado numa das zonas mais vivas da cidade de Almada. Com efeito, foi neste período excepcional que o antigo professor de matemática da Escola Comercial e Industrial Emídio Navarro veio juntar-se aos libertários, disponibilizando as duas montras daquela livraria para se manter uma exposição permanente de propaganda e venda de obras anarquistas. Curiosamente, foi nesse meio de marcada influência cultural que o jovem Carlos Reis, mais tarde editor do boletim Satanás, despontou para o anarquismo.
Posicionado num dos extremos da mesa vemos o militante anarquista carpinteiro de profissão José Correia Pires (1907-1976). É uma figura de maior importância anarquista que, por imperativo ético, fazia propaganda combatendo o Totalitarismo moderno e, por extensão, o fascismo e o bolchevismo, na suas versões trotskista, estalinista e maoista, tendo fixado em Almada a sua residência, em 1945, após a sua libertação do Campo de Concentração do Tarrafal. Na nossa perspectiva, poder dizer-se que este homem bom agregou em si quer uma imensa simpatia humana quer a admiração de todos com quem ele conviveu. Enquanto opositor à ditadura nacional enformada pelo Estado Novo, viria a desenvolver uma intensa actividade associativa, sendo presidente, em 1955-56, da Sociedade Filarmónica Incrível Almadense testemunhando, desse modo, o pendor activista do anarquismo social. Na verdade, face aos condicionalismos impostos à livre reunião das pessoas e à liberdade de imprensa, e ao aniquilamento de qualquer actividade de forma a impedir a afirmação social e a objecção de consciência - a ditadura nacional desde o seu início tornou evidente que o seu objectivo era a ilegalização das estruturas do movimento libertário - o companheiro José Correia Pires assumiu com o seu testemunho directo um papel muito importante na vida pública da cidade de Almada, vindo a falecer a 28 de Outubro de 1976.
A finalizar debruçar-nos-emos sobre aquele que é a personagem emocionalmente mais conhecida do atentado à bomba, em 1937, o único atentado contra o ditador português Oliveira Salazar. O destacado militante anarcosindicalista Emídio Santana (1906-1988) encontra-se posicionado no extremo do conjunto dos oradores. Dentro do conceito sindicalista revolucionário e distinguindo-se pela sua posição de independência no campo das ideias, veio falar do processo de restabelecimento da «normalidade constitucional», atendendo a que era indispensável pensar a latitude revolucionária da central operária, a estrutura organizacional que deve conduzir à revolução social, cujo objectivo de emancipação social consigna que «a emancipação dos trabalhadores deve ser obra dos próprios trabalhadores».


No espaço do grande salão de festas da Sociedade Filarmónica Incrível Almadense, entre os rostos desconhecidos de muitas pessoas assistentes que denunciavam uma justificada curiosidade, passava a denúncia triunfante e o gozo do rancor político de substância predominantemente marxista de alguns dos jovens que estavam presentes. Entre os inúmeros rostos, não podemos deixar de referir a presença daqueles que na impetuosidade da época iam transmitindo apaixonadamente o conteúdo das nossas ideias, por isso destacamos nas primeiras filas da assistência colectiva participada, o companheiro Barreto Atalaião, a companheira Berta, o sapateiro Artur Modesto (1897-1985), o trabalhador rural José Paulo Lola (1901-?) e o comerciante de pescado José de Brito; mais atrás, também vemos o companheiro setubalense Jaime Rebelo (1900-1975). E nessa imensa malha humana de dezenas e dezenas de pessoas, além do autor destas linhas, sabemos que alguns mais anarquistas de Almada marcaram a sua presença, tais como os companheiros Jorge Quaresma (1905-1990), o operário corticeiro anarquista e esperantista José Eduardo (1909-?), Fernando Paiva Moura (1925-), contra-mestre de 1ª do Arsenal do Alfeite e fundador com o companheiro José Correia Pires da Cooperativa da Panificação Sulcoop, que hoje vive ainda em Almada, o carpinteiro de moldes Viriato Pereira (1927-?) e outros que pedimos desculpa por não mencionar por falta de espaço, atraindo a simpatia da população local e amizade ao Movimento Libertário Português.
Actualmente a nossa Associação funciona como um Ateneu Libertário - depois de derrubadas as ditaduras salazarista e franquista é o mais antigo da Península Ibérica -, começando no seu propósito por ser um lugar aberto ao encontro de grupos e convívio de outros indivíduos que livremente o compõem, com o fim de divulgar no plano social a hipótese anarquista. E, assim, faz muitos e muitos anos que dentro dos mesmos princípios abrangendo diversas gerações se editou o jornal Voz Anarquista, a revista Antítese, o Boletim de Informações Anarquistas e por fim a revista Húmus, procurando-se produzir um ambiente que reflicta um espírito não subserviente de forma a alargar as experiências e a mente humana. Mas é necessário dizer o que importa sem querermos ser sentimentais, pois a nossa associação flutua sobre as condições que derivam do apoio mútuo que lhe está na origem e a sua identidade está ligada indissoluvelmente aos anarquistas comummente designados por a velha guarda comunista libertária de Almada. É a esta consciência que hoje somos responsavelmente aderentes.

Carlos Gordilho,
Quinta da Alegria, Almada, 2017